O louvor de Maria em Martim Lutero (Lc 1,47)

O louvor de Maria em Martim Lutero (Lc 1,47)

Depois de 500 anos da Reforma Protestante, a figura de Lutero para muitos ainda permanece obscura. Há quem o endemonize, quem o canonize e também quem o ignore. Mas isso não importa agora, porque não discutiremos biografia, procuraremos aqui extrair sua teologia, respeitando seu espírito e expondo algumas de suas ideias, mais precisamente acerca do trecho de uma de suas obras que merece ser mais lida e refletida. O fato é que suas ideias já atravessaram cinco séculos de história e desencadearam em diversas formas de expressão. Apenas relembrando que, para a Igreja Católica, todo herege é excomungado, mas nem todo excomungado é herege. Lutero foi sancionado pela pena de excomunhão, não por heresia, que seria negar parte de uma verdade fundamental da fé (cf. Bula papal Decet Romanum Pontificem de 3 de janeiro de 1521; Código de Direito Canônico, Cân. 1364 § 1), é preciso restabelecer esses problemas porque na boca de muita gente há controvérsias e falácias a respeito do assunto. De antemão, não estamos aqui forçando a “recatolicizar” este teólogo, muito menos receosos de desaprovação de pessoas “enérgicas” ou cismáticas que adoram um holofote. Somente um bom pesquisador vai em busca do que ainda não conhece, daquilo que ainda não tem. Dito isso, procuremos, então, nos contextualizar, relacionando o Autor com a referida obra:

Em 1521, proscrito e excomungado, asilado em Wartburgo, Lutero concluiu sua análise e interpretação do Magnificat de Maria (Lucas 1,46b-55). Em meio ao conturbado contexto e às perseguições que sofrera, desde 1517, ele encontrou consolo e esperança nas palavras da “doce mãe de Deus”. Este acalento está perpassado de avaliação e crítica pessoal, social, eclesiástica e política” (REIMER, 2016, p. 42).

Em “Magnificat: O louvor de Maria”, Martim Lutero vai elaborando um pensamento sobre o correto louvor do cristão a Deus, diante de um contexto marcado por crise religiosa e anarquia entre o poder religioso e temporal (século XVI), antes mais entrelaçados e mal resolvidos. Lutero acaba por construir uma mariologia bíblica, pois se detém a abordar o que a Bíblia (ou Maria) diz de si mesma, não partindo da doutrina dos dogmas ou privilégios, realidades estas muito presentes no pensamento da piedade popular e teológica europeia da época. O que Lutero ressalta nesta sua obra é o papel da graça na vida de Maria e, consequentemente, na vida do cristão, e como responder a esse ato salvífico de Deus pela fé. Maria torna-se o principal modelo cristão de ética (práxis) até mesmo para os políticos, já que o autor remete sua obra a Príncipes alemães da época. Em outras palavras, ele quis dizer que compreender o Magnificat é ter uma vida louvável, nada além de ter uma experiência pessoal de Deus que brota de seu amor, provocado pelo conhecimento de Deus, o que moldará todo nosso modo de agir.

Neste segundo versículo trabalhado do Magnificat (Lc 1,47), o espírito de Maria se alegra ou consegue compreender o incompreensível, essa alegria se dá por causa de Deus mesmo (cf. Salmo 150), pelo fato do Salvador ter a iniciativa de reconhecer o frágil ou o imperceptível. Portanto, o Magnificat não é qualquer cântico, é uma verdadeira exaltação, no sentido original de “pular de alegria” (cf. p. 40), um louvor da mais alta estima. Essa alegria de Maria não se dá por causa dos bens, mas por causa de Deus que dá a salvação.

Maria canta a salvação operada pelo seu Salvador, canta o louvor de Deus porque Ele fez nela grandes coisas, e a maior de suas obras em sua vida foi a graça de ser mãe do Filho de Deus, um dogma jamais contestado por Lutero:

“… ela com justiça é chamada não apenas de mãe dos homens, mas também a Mãe de Deus… é certo que Maria é a Mãe do real e verdadeiro Deus” (Sermão Concórdia, vol. 24, p. 107).

Maria chama primeiramente Deus de Senhor (Lc 1,46), depois de Salvador (Lc 1,47), para só então mencionar suas obras, o que para Lutero constitui a fórmula certa para todos os cristãos, isto é, devemos buscar a Deus por Ele mesmo e não pelo interesse dos seus favores; o amor e louvor é o centro do Cântico:

“Ama e louva a Deus exclusivamente e do modo legítimo aquele que o louva somente porque ele é bom, que não pensa em nada além de sua bondade pura e que se alegra somente com ela” (p. 37)

Esta é a forma mais bela, mais elevada e pura que Maria encontrou para louvar a Deus.

Lutero critica as pessoas que amam a Deus de forma impura e pervertida, o que para ele seria buscar a Deus pelos próprios interesses. Aqueles que não são capazes de louvar a Deus em suas misérias e carências, também não o são capazes de compreender esse louvor de Deus e sua bondade; tais pessoas cultuam mais a salvação que o Salvador, mais os dons que o Doador deles (cf. Fl 4,12; Sl 49,18; Jo 6,26).

“Tais espíritos impuros e falsos mancham todas as dádivas de Deus e o impedem de lhes dar muito e que possa agir neles para a bem aventurança” (p. 38).

O louvor de Maria para Lutero foi perfeito, porque cercada de nobres benefícios de Deus, não enalteceu a si mesma e nem de tais favores tira vantagem própria, ao ponto de estar disposta a perdê-los se assim Deus o quisesse! A pessoa que se atém aos bens materiais e às honras não é capaz de esvaziar a si mesma para dar lugar a Deus, nunca poderá o servir e amar completamente como a Mãe de Deus. Agindo assim, Maria não cede à tentação. Os espíritos verdadeiramente humildes, vazios [de si mesmos], famintos e tementes a Deus, são aqueles que não dão maior atenção aos benefícios ou não os percebem, e quando os percebem, têm consciência de que não os possuem, bem pelo contrário, sabem que os dons vêm e pertencem a Ele. As pessoas que verdadeiramente possuem dons agem como se não os tivessem, prendem-se somente à bondade divina, não têm prazer neles, se contentam com Deus e prosseguem a caminhada da mesma forma, em atitude de ação de graças.

Num contexto marcado pela idolatria ao poder e hipocrisia religiosa, o autor vai elencando algumas pessoas e posturas que se (des)encaminham contra essa pureza do evangelho. Vê-se aqui, à ótica do autor, um sistema religioso que se apega às honras e se afasta dos pequenos, ao afirmar Lutero que

“o mundo de hoje está cheio de falsos pregadores e santos, que falam muito ao pobre povo sobre as boas obras” (p. 40).

Ainda segundo ele, todos esses são aproveitadores e mercenários, pessoas que vivem com espírito falso; até ensinam como fazer boas obras, mas por interesse próprio.

Tais afirmações colocam em evidência a velha tensão de Lutero para com a Carta de São Tiago frente à questão da interpretação das obras em nome da fé (cf. Tg 2,18; Hb 10,38; Hab 2,4) e os escândalos de simonia (comercialização das indulgências). Ele chega a ser incisivo quando critica “todo o mundo, todos os conventos e todas as igrejas” (p. 41) relacionando-os com um espírito mau e falso. De qualquer forma, o essencial para ele seria anunciar e conhecer a pura bondade de Deus, pois a salvação não pode ser comprada ou trocada, mas doada livremente por Deus, por isso, essas obras devem ser realizadas sem esperar algo em troca, exaltando sua pura bondade.

No louvor de Maria ainda podemos extrair outros ensinamentos práticos. Aqui o poder é colocado a serviço do outro, não é ostentação desmedida, mas elevação dos humildes por parte de Deus. A justificação, defende Lutero, vem pela fé e não simplesmente pelas obras e práticas religiosas inconscientes e vazias, por isso se faz necessário distinguir a verdadeira da falsa humildade. Ela própria [Maria] atribui tudo ao fato de Deus ter observado sua “nulidade”, daí sua alegria, amor e louvor.

Maria canta a glória de Deus, não enaltece a si mesma. Antes, apela para o espírito, ou seja, para a dimensão mais profunda de si mesma. Não canta “eu engrandeço o Senhor”, mas antes “minha alma”, desse modo, cede toda sua liberdade para Deus agir, é mais que questão de escolha, ela o louva com as palavras e com a própria existência, numa passividade teológica que impressiona. Só então depois menciona sua bem-aventurança, que também é obra Dele, ou seja, realidade que não depende dos esforços da pessoa, mas antes da graça, evidenciando aqui uma personalidade nobre e terna (cf. p. 37). É como se Maria dissesse a Deus como a “noiva” da história que Lutero conta:

“Não quero o que é seu, quero a você mesmo; não amo a você mais quando vou bem, nem amo menos quando vou mal”. (p. 39)

Este cântico de Maria inspira-se sobretudo no conhecido Cântico de Ana (1Sm 2,1-10) e em alguns outros trechos do Antigo Testamento onde os dois grandes temas são: 1) o socorro de Deus aos pobres e pequenos frente aos poderosos, e 2) apresenta Israel como objeto da graça divina (cf. Bíblia de Jerusalém, 2004, p. 1788, nota “c”). No fechamento da Encíclica “Evangelii Gaudium” (A Alegria do Evangelho) de 24/11/2013, o Papa Francisco dirigiu uma oração à Nossa Senhora destacando estes aspectos:

“Vós cheia da presença de Cristo, levastes a alegria a João, o Batista, fazendo-o exultar no seio de sua mãe. Vós, estremecendo de alegria, cantastes as maravilhas do Senhor”. (EG, 2013, p. 164)

“Exultar” é uma linguagem muito familiar aos profetas bíblicos em seus momentos de revelação e oração: “Exulta muito, filha de Sião! Grita de alegria, filha de Jerusalém! Eis que teu rei vem a ti” (Zc 9,9). Então, o Papa Francisco foi muito feliz quando utilizou o termo “estremecendo” ao se referir ao Magnificat, porque se trata de uma elevação da alma, de um entusiasmo inenarrável, de uma alegria que vem de “dentro pra fora”. Os profetas não separavam a intimidade com Deus daquela sede por amor, fidelidade e justiça. Que possamos, a exemplo da Serva do Senhor, profetizar no espírito, estremecer desta alegria, extasiados de contemplação, mas também permanecermos comprometidos com todos os sinais de vida que precisam de nossa atenção, como o fez Maria de Nazaré, a virgem do sorriso e da alegria espiritual, que não se contentou com o êxtase, e imediatamente pôs os pés no chão a serviço de sua prima Isabel. Somente um estado espiritual de “exultação” é que poderia fazer aquela jovem cantar que seu Deus “derrubou do trono os poderosos” (Lc 1,52) diante do maior império que a humanidade já conheceu.

Sugestão de Leitura: Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação

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Referências


MARTIM LUTERO. Magnificat: O louvor de Maria. Aparecida: Editora Santuário; São Leopoldo, RS: Editora Sinodal, 2015.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2004.

REIMER, Ivoni Richter. “O magnificat de Maria no magnificat de Lutero”. Revista de Estudos de Religião da Universidade Metodista de São Paulo, SP, v. 30, n. 2, 41-69, maio-ago. 2016, p. 42.

PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium sobre a Alegria do Evangelho. São Paulo: Paulus, 2013, p. 164.

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